Era uma tarde no final de 83 quando Papa me chamou para falar sobre os planos de montar uma banda de rock'n'roll. Estava no intervalo entre uma aula e outra. O sol brilhava forte no pátio deixando as suas faces molhadas de suor.
- Quem mais tá nessa? - perguntei.
- Xixarro é o único que você conhece. Outro tá vindo ali, o nome dele é Clod.
- Os ensaios começam amanhã. Como é, vai topar?
- Tô dentro. - falei
- O endereço tá aqui. A gente começa às 2 da tarde.
Chegando ao local combinado logo notei que Papa estava certo, eu só conhecia Xixarro. Foi a primeira pessoa com quem eu fiz amizade lá no Social. Ele era magro, alto, meio dentuço e seu cabelo estava sempre desarrumado. Naquela época ouvia muito Heavy Metal, assim como todos nós. Ele também gostava do Camisa de Vênus e de algumas bandas Punk paulistas. Na banda era guitarrista base. Hoje trabalha num banco.
- E aí, meu velho. - sempre chamávamos um ao outro de 'meu velho'.
Me mostraram as letras das duas músicas que íamos tocar no festival e tocaram algumas vezes para que eu aprendesse a melodia (se é que se pode chamar aquilo de melodia).
As músicas não tinham mais do que dois ou três acordes e eram tocadas num rítmo veloz, típico do punk rock da época. Como eu ia desempenhar a função de back vocal, foi fácil aprender a minha parte: consistia, basicamente, em berrar os refrões junto com Papa e Clod .
Quando chegou o dia do festival estávamos prontos. Tínhamos roubado um pôster de Pepeu Gomes e um disco de Maria Bethânia alguns dias antes. Íamos jogá-los para a platéia em determinadas horas da música "Axé", cuja letra era assim:
E alguém pisa no seu pé
Olhe bem pra cara dele
O sujeito é um Axé
Que é por causa de sua fome
Não acredite, é mentira
Ele é fã de Pepeu Gomes
Tem que ser eliminado
Uma lavagem cerebral
E ele está recuperado
É o trabalho, ele diz
Mas um disco de Bethânia
É o que ele sempre quis
E lhe pede um aumento
Então ouve um grande grito
'Ouça rock seu nojento!'
Primeiro show
Estávamos com os nervos a flor da pele. O suor jorrava pela mistura do nervosismo com o calor dos holofotes. José de Sá afinou o baixo e depois a guitarra de Xixarro, que tomou um imenso choque ao encostar a mão suada nas cordas metálicas. Como se isso não fosse o suficiente, Papa foi desenroscar, do pedestal do microfone, a corrente de um punk; este a puxou, lascando a mão do nosso crooner (onde já se viu querer fazer gentileza a um punk!).
- Sangrando pra caralho! - sagazmente completou Márcio Paixão.
No final da segunda estrofe eu rasguei o pôster de Pepeu Gomes no meio e o jogamos à platéia. Deliraram. Não sobrou nenhum pedaço maior que a unha do dedo mindinho do pé de um bebê de dois meses. E cuspiam, e dançavam. Na quarta estrofe jogamos a capa e o disco de Maria Bethânia. Jogaram de volta. Rasgamos a capa, quebramos o disco e jogamos de novo. Tiveram o mesmo destino do pôster. Última estrofe: explodimos o Troca de Segredos (o circo onde se realizava o festival) com a frase que se tornaria o slogan do Espírito de Porco: 'Ouça rock seu nojento!'. A segunda música, Princípio Ativo, não agradou tanto.
Fomos classificados para a final do festival no circo Relâmpago. Tocamos no dia 2 de outubro de 1983 e acabamos em 4º lugar. Isso porque rolou uma pressão muito grande e os punks presentes ameaçaram tocar fogo no circo se o Gonorréia não fosse o vencedor. Assim, o Gonorréia, que pela contagem dos pontos estava em 4º, venceu; o Skarro, que tinha realmente ganho o festival, ficou em 2º; e o Delirium Tremens ficou em 3º.
Depois disso: tocamos no Muisba, festival de música do colégio; no Art Kasarão, abrindo para um outro conjunto chamado Velorium, foi o último show do qual eu e Clod participamos em palco (eu passei a produzir a banda); mais uma vez no Relâmpago, abrindo para o Camisa de Vênus; no Festival de Verão em Arembepe, uma grande armação do pai de Papa; e, finalmente, no dia 29 de janeiro de 1984, no farol da barra, onde mais uma vez abrimos para o Camisa. No dia 11 de fevereiro do mesmo ano a banda se dissolveu por completo."
Ótimo texto, David!!! Passa bem o clima da época. Era aquilo mesmo. Além do mais, estava faltando alguma coisa do Espírito, esse blog estava Ramal demais...
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirCoverdelemesmo,
ResponderExcluirExcelente arqueologia dos espíritos suínos. Foi ótimo trazer à tona um pouco da história da banda, uma das melhores(ou piores?)expressões do punk rock da Urinópolis dos 80. Eu vi, eu vivi, eu estava lá, eu cuspi, eu participei do auto-fé dos pepeus e bethânias, numa catarse radical. É por isso que vcs são verdadeiras lêndias vivas do rock local!
Está festa...será um grande revival, para todos
ResponderExcluiraqueles que viveram está fase mágica em que o rock baiano passou naquela década. E aos que não estiveram presentes na cena, poderão sentir um pouquinho da catarse que o rock'n'roll baiano viveu.
Só não precisa rolar as cusparadas!!!!
ResponderExcluirSó uns perdigotos de leve, só para não perder a prática, tipo Joe Strummer cantando Complete Control ao vivo no Shea Stadium... Pode ser?
ResponderExcluirhoje
ResponderExcluirneste momento te um casamento
um divorcio e um violamento
um espetaculo de gala
um irmão que apanha e cala
um grande aumento de consumo
um bobo louco de ciumes
um bebado que tomba louco
e um grande imortal ESPIRITO DE PORCO...
Boa lembrança!!! Do poema de Vinícius de Moraes "Dia da Criação" que eu adaptei para o Espírito de Porco.
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