2 de julho de 2009

OUÇA ROCK, SEU NOJENTO!!!!!

Era uma tarde no final de 83 quando Papa me chamou para falar sobre os planos de montar uma banda de rock'n'roll. Estava no intervalo entre uma aula e outra. O sol brilhava forte no pátio deixando as suas faces molhadas de suor.

- Vai se chamar Espírito de Porco - explicou Papa.
- Quem mais tá nessa? - perguntei.
- Xixarro é o único que você conhece. Outro tá vindo ali, o nome dele é Clod.
- Os ensaios começam amanhã. Como é, vai topar?
- Tô dentro. - falei
- O endereço tá aqui. A gente começa às 2 da tarde.

A banda acabara de ser formada e o nosso primeiro compromisso era dali a duas semanas. Íamos tocar num festival de Rock promovido por uma rádio FM. Lá estariam bandas como Gonorréia, Delirium Tremens, Skarro e outras já conhecidas pelo público baiano.

Chegando ao local combinado logo notei que Papa estava certo, eu só conhecia Xixarro. Foi a primeira pessoa com quem eu fiz amizade lá no Social. Ele era magro, alto, meio dentuço e seu cabelo estava sempre desarrumado. Naquela época ouvia muito Heavy Metal, assim como todos nós. Ele também gostava do Camisa de Vênus e de algumas bandas Punk paulistas. Na banda era guitarrista base. Hoje trabalha num banco.

- Qualé meu velho. - falou Xixarro com a sua voz aguda.
- E aí, meu velho. - sempre chamávamos um ao outro de 'meu velho'.

Papa me apresentou ao resto da banda.

- Este é José de Sá - falou - guitarrista solo.

Na verdade ele fazia exatamente a mesma coisa que Xixarro, mas diziamos que ele era solo porque tocava melhor e era o único que sabia afinar os instrumentos.

- Este é o irmão dele, Estácio. - continuou Papa. - Ele toca bateria.

Ver Estácio tocando era muito engraçado. Ele era baixo, baixinho mesmo. Quando sentava atrás da bateria, praticamente sumia. Só se via mesmo os braços subindo e descendo entre os pratos e tambores.

- Aquele ali com o baixo na mão é o Márcio Paixão. A gente chama ele de Bebê Gigante.

Márcio era gordo e tinha cara de abestalhado. Falava chorando. Acho que o apelido era por isso. Não tenho certeza.

Me mostraram as letras das duas músicas que íamos tocar no festival e tocaram algumas vezes para que eu aprendesse a melodia (se é que se pode chamar aquilo de melodia).

As músicas não tinham mais do que dois ou três acordes e eram tocadas num rítmo veloz, típico do punk rock da época. Como eu ia desempenhar a função de back vocal, foi fácil aprender a minha parte: consistia, basicamente, em berrar os refrões junto com Papa e Clod .

Quando chegou o dia do festival estávamos prontos. Tínhamos roubado um pôster de Pepeu Gomes e um disco de Maria Bethânia alguns dias antes. Íamos jogá-los para a platéia em determinadas horas da música "Axé", cuja letra era assim:

Se você está na rua
E alguém pisa no seu pé
Olhe bem pra cara dele
O sujeito é um Axé

Vai falar que foi descuido
Que é por causa de sua fome
Não acredite, é mentira
Ele é fã de Pepeu Gomes

Esse cara é um axé
Tem que ser eliminado
Uma lavagem cerebral
E ele está recuperado

Vive doido e apressado
É o trabalho, ele diz
Mas um disco de Bethânia
É o que ele sempre quis

Vai correndo pro patrão
E lhe pede um aumento
Então ouve um grande grito
'Ouça rock seu nojento!'

A letra era de Xixarro e reflete um momento de radicalismo musical extremo. Dá pra sentir bem isso no refrão: Esse cara é um axé / Tem que ser eliminado / Uma lavagem cerebral / E ele está recuperado. Um axé era qualquer pessoa que escutasse música baiana. Seu estereótipo era de uma pessoa que tivesse cabelo comprido, usasse calças folgadas e bata indiana. Não havia nenhuma análise ideológica ou racial, era uma discriminação puramente musical, mas tinha estímulo da mídia: um programa numa rádio FM. O comando do programa cabia a Marcelo Nova, mentor intelectual do 'Camisa de Vênus', a banda de rock detonadora do movimento 'punk-classe-média' ocorrido no início dos 80 em Salvador do qual o 'Espírito de Porco' fez parte. A crítica preconceituosa de Marcelo Nova aos 'axés' fazia parte de uma estratégia dicotomizante do gosto do público. Ele, atacando quem apreciava a música da indústria do carnaval baiano ou a MPB, procurava atrair seguidores às suas idéias e, consequentemente, assegurar condições para o desenvolvimento do rock'n'roll na cidade, o que garantiria a ponte para o seu sucesso pessoal. E de fato isto aconteceu.


Primeiro show

Estávamos com os nervos a flor da pele. O suor jorrava pela mistura do nervosismo com o calor dos holofotes. José de Sá afinou o baixo e depois a guitarra de Xixarro, que tomou um imenso choque ao encostar a mão suada nas cordas metálicas. Como se isso não fosse o suficiente, Papa foi desenroscar, do pedestal do microfone, a corrente de um punk; este a puxou, lascando a mão do nosso
crooner (onde já se viu querer fazer gentileza a um punk!).

- Papa tá sangrando. - observou, o então micro-batera, Estácio.
- Sangrando pra caralho! - sagazmente completou Márcio Paixão.

Enrolamos um pano na mão de Papa e começamos a apresentação. Inicialmente inseguros, porém firmes pelas duas semanas de ensaios das mesmas duas músicas. Pouco a pouco fomos nos empolgando ao notar a reação positiva da platéia. Porradas, correntadas, pseudo-pogo e cusparadas. Cuspiram no palco. Cuspimos de volta. Choveu cuspe. Virou moda nos 'rockshows', depois disso, cuspir como instituição de empatia. E empatia era o que rolava. O som estava alto. As guitarras estridentes pelo excesso de distorção, juntas à forte marcação da bateria casada ao baixo, que, tocado apenas na corda MI repetia as dominantes maior dos acordes dos guitarristas, geravam uma massa sonora que não deixava ninguém quieto. A voz forçadamente rouca de Papa em conjunto com o back vocal meu e de Clod despejavam os versos de fácil compreensão e absorção. Eles estavam nos adorando.

No final da segunda estrofe eu rasguei o pôster de Pepeu Gomes no meio e o jogamos à platéia. Deliraram. Não sobrou nenhum pedaço maior que a unha do dedo mindinho do pé de um bebê de dois meses. E cuspiam, e dançavam. Na quarta estrofe jogamos a capa e o disco de Maria Bethânia. Jogaram de volta. Rasgamos a capa, quebramos o disco e jogamos de novo. Tiveram o mesmo destino do pôster. Última estrofe: explodimos o Troca de Segredos (o circo onde se realizava o festival) com a frase que se tornaria o slogan do Espírito de Porco: 'Ouça rock seu nojento!'. A segunda música, Princípio Ativo, não agradou tanto.

Fomos classificados para a final do festival no circo Relâmpago. Tocamos no dia 2 de outubro de 1983 e acabamos em 4º lugar. Isso porque rolou uma pressão muito grande e os punks presentes ameaçaram tocar fogo no circo se o Gonorréia não fosse o vencedor. Assim, o Gonorréia, que pela contagem dos pontos estava em 4º, venceu; o Skarro, que tinha realmente ganho o festival, ficou em 2º; e o Delirium Tremens ficou em 3º.

Depois disso: tocamos no Muisba, festival de música do colégio; no Art Kasarão, abrindo para um outro conjunto chamado Velorium, foi o último show do qual eu e Clod participamos em palco (eu passei a produzir a banda); mais uma vez no Relâmpago, abrindo para o Camisa de Vênus; no Festival de Verão em Arembepe, uma grande armação do pai de Papa; e, finalmente, no dia 29 de janeiro de 1984, no farol da barra, onde mais uma vez abrimos para o Camisa. No dia 11 de fevereiro do mesmo ano a banda se dissolveu por completo."

8 comentários:

  1. Ótimo texto, David!!! Passa bem o clima da época. Era aquilo mesmo. Além do mais, estava faltando alguma coisa do Espírito, esse blog estava Ramal demais...

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Coverdelemesmo,
    Excelente arqueologia dos espíritos suínos. Foi ótimo trazer à tona um pouco da história da banda, uma das melhores(ou piores?)expressões do punk rock da Urinópolis dos 80. Eu vi, eu vivi, eu estava lá, eu cuspi, eu participei do auto-fé dos pepeus e bethânias, numa catarse radical. É por isso que vcs são verdadeiras lêndias vivas do rock local!

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  4. Está festa...será um grande revival, para todos
    aqueles que viveram está fase mágica em que o rock baiano passou naquela década. E aos que não estiveram presentes na cena, poderão sentir um pouquinho da catarse que o rock'n'roll baiano viveu.

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  5. Só não precisa rolar as cusparadas!!!!

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  6. Só uns perdigotos de leve, só para não perder a prática, tipo Joe Strummer cantando Complete Control ao vivo no Shea Stadium... Pode ser?

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  7. hoje
    neste momento te um casamento
    um divorcio e um violamento
    um espetaculo de gala
    um irmão que apanha e cala

    um grande aumento de consumo
    um bobo louco de ciumes
    um bebado que tomba louco
    e um grande imortal ESPIRITO DE PORCO...




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  8. Boa lembrança!!! Do poema de Vinícius de Moraes "Dia da Criação" que eu adaptei para o Espírito de Porco.

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